Autor: Eduardo Levy
Há um erro grotesco circulando por aí que precisa ser corrigido, pelo bem dos contemporâneos e dos pósteros. É um erro sobre cenouras. Qual é a causa das cenouras? As cenouras aparecem para nós como um produto no supermercado, mas serão os supermercados a causa das cenouras? Não. Para produzir cenouras, é necessário primeiro selecionar solos drenados, com boa capacidade de absorção de nutrientes e p.H. entre 6.0 e 6.5. Depois é preciso selecionar boas sementes e, uma semana antes de plantá-las, preparar e fertilizar o solo. A seguir é necessário plantar as sementes, hidratá-las diariamente com cuidado para que não haja água em excesso nem com pressão demais, cobrir sempre com terra as cenouras germinantes para que não azedem, podá-las constantemente e, depois de cerca de três meses, colhê-las. Por último é preciso transportá-las para uma ceasa, de onde serão levadas para um supermercado, local onde finalmente adquirem existência física para nós. Mas teriam os supermercados criado as cenouras?
Há pessoas que estão convencidas de que sim. São aquelas que veem um pedaço de gelo no mar e acreditam tratar-se antes de uma pedrinha flutuante que da pontinha de um iceberg de dez metros; aquela para as quais a Revolução Russa poderia ter existido sem que antes tivesse existido Karl Marx ou a Revolução Francesa poderia ter existido sem que, antes, tivesse existido Jean-Jacques Rousseau. São pessoas, enfim, que enxergam a parte mais exterior de um fenômeno e acreditam tratar-se de todo o fenômeno. São as pessoas que acreditam que a principal, ou até a única, causa do impeachment de Dilma Rousseff foi a atividade do Movimento Brasil Livre, as manifestações ou, santo Deus!, o deputado Eduardo Cunha.
Considere: quando Kim Kataguiri começou a convocar pessoas para manifestações anti-PT, essa convocação, pelas graças do carisma e do talento retórico de Kim, produziu na população o sentimento antipetista? Deu ciência aos brasileiros dos planos totalitários e revolucionários do PT? Ensinou ao povo que o PT era corrupto? Instruiu o cidadão ignaro quanto às ligações entre os petistas e as ditaduras de Cuba e da Venezuela?
A atividade do MBL foi a face mais exterior e visível de uma cadeia causal que tem pelo menos 20 anos. Foi o transporte da cenoura ao supermercado. É uma ação importante, sem dúvida, imprescindível para a conclusão do processo, mas está muito longe de ser a principal, muito menos a única, causa da cenoura.
A causa do impeachment de Dilma Rousseff remonta ao ano de 1994. Sim, 1994. Foi quando foi publicado no Brasil o livro “A nova era e a revolução cultural“, o primeiro a denunciar os planos totalitários do PT, seus métodos corruptos e a revolução gramsciana em curso. Nessa época, Diogo Mainardi era um romancista, Mário Sabino era um repórter desconhecido, Reinaldo Azevedo escrevia ensaios sobre Graciliano Ramos e Kim Kataguiri, bem… Kim Kataguiri não havia nascido. No livro se lê, por exemplo, o seguinte:
“Pela sucessão de acontecimentos desde a campanha do impeachment [de Collor], o PT mostrou sua vocação, para mim surpreendente, de partido manipulador e golpista, capaz de conduzir o país às vias fraudulentas da “revolução passiva” gramsciana, usando para isso dos meios mais covardes e ilícitos – a espionagem política, a chantagem psicológica, a prostituição da cultura, o boicote a medidas saneadoras, a agitação histérica que apela aos sentimentos mais baixos da população -, e de adornar esse pacote de sujidades com um discurso moralista que recende a sacristia. O partido que, para sabotar um candidato, promove no lançamento da nova moeda algo como uma ‘greve preventiva’ sob a espantosa alegação de uma possibilidade teórica de danos salariais futuros, sabendo que essa greve resultará em aumento do preço dos combustíveis e em retomada do ciclo inflacionário, dando facticiamente confirmação retroativa aos danos anunciados, é que, francamente, decidiu imitar o capeta: produz o mal para no ventre dele gerar o ódio, e no ventre do ódio o discurso de acusação.”
Em 1995 e 1996 seriam publicados, respectivamente, “O jardim das aflições” e “O imbecil coletivo“, mais duas monstruosas cacetadas no PT em particular e na esquerda em geral. Desde então, Olavo de Carvalho expõe essas ideias, de maneira muito mais aprofundada, em cursos particulares para milhares de alunos, que depois as expõem a outros. Ainda em 1996, ele explicou o que o PT viria a se tornar em uma entrevista a Pedro Bial (está disponível no YouTube). Tudo isso, naturalmente, foi considerado delirante, paranoico e conspiracionista, como de costume. Apenas “O imbecil coletivo“, o menos substancial dos três livros, fez barulho, mas não exerceu influência maior, tanto que Lula foi eleito em 2002.
Ora, quem tem um pouquinho de conhecimento histórico sabe como as ideias filosóficas chegam a exercer influência na cultura. Quando aparecem, elas são conhecidas por dez, que as ensinam a 100, que as ensinam a 1000 e assim por diante, sempre na moita, sempre longe dos olhos do público em geral. Quando elas chegam a ter alguma influência em escala cultural, estão tão diluídas que muitas vezes ninguém sabe de onde vieram.
Por volta de 2007, Reinaldo Azevedo publicou um artigo na revista “Veja” sobre a revolução gramsciana que levara o PT ao poder. De onde você acha que veio aquilo? Você acha que um jornalista sem maior formação filosófica foi capaz de formulá-lo? Anos depois, Merval Pereira publicou em “O Globo” uma coluna sobre o Foro de Sao Paulo. De onde você acha que veio aquilo? Acha que Merval foi lá olhar os documentos do Foro? Essas coisas foram acontecendo e se espalhando, lentamente, até chegar a um ponto em que muitas pessoas expunham as ideias do maluco, do paranoico, do conspiracionista sem ter a menor ideia de onde elas haviam vindo.
Quando surgiu o Orkut e depois o Facebook, começou o Curso Online de Filosofia (2009) e foi publicado “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota” (2013), o homem se tornou um fenômeno de massas, mas as ideais dele, sem ninguém saber de onde elas vinham, já estavam em circulação há algum tempo. Além de seu conteúdo, elas exerciam influência, pela atividade do próprio Olavo de Carvalho e de centenas de seus alunos, ao criar aos poucos na opinião público o espaço, até então exíguo, para a crítica ao PT. Sem a criação desse espaço, pessoas que hoje ridicularizam o homem jamais teriam aberto a boca.
Houve também, sem dúvida, muitos desenvolvimentos paralelos menores, como a crítica não ideológica ao PT de jornalistas como Diogo Mainardi, a própria revelação dos fatos: mensalão, conexão PT-Farc etc., além da atividade de movimentos e personalidades liberais. Nada disso, no entanto, se equiparava em unidade e amplitude às ideias do filósofo.
Entre o meio de 2014 e o de 2015, a sucessão de eventos se avolumou: houve a coleção de iniquidades da campanha eleitoral, o ultraje da Copa do Mundo e o avanço da Operação Lava Jato, revelando o grau de perfídia do PT e enfurecendo o povo. Surgiu O Antagonista, denunciando os crimes do partido implacavelmente de minuto a minuto, pressionando políticos e imprensa, ridicularizando e dessecralizando o poder; avolumou-se a crise, os escândalos tornaram-se diários, foram reveladas as pedaladas fiscais e, enfim, Eduardo Cunha foi para a oposição. Só por essa época é que começaram as manifestações e apareceu o Movimento Brasil Livre, cuja atividade seria impensável sem tudo o que veio antes. Os movimentos foram a cereja do bolo, a maisena que se acrescenta ao molho já pronto para dar consistência.
Quando explodiu o ódio ao PT catalisado pela crise econômica, pela deterioração do ambiente político, pelos escândalos de corrupção diários e pelo clima de guerra instaurado pela atividade tanto de site como O Antagonista quanto de movimentos como, sim, o MBL, o discurso antipetista estava pronto. Sem esse discurso, nenhuma unidade de propósitos e ação seria possível; aconteceria antes um ódio difuso. E a fonte principal e última desse discurso é, sim, a atividade jornalística e filosófica de Olavo de Carvalho.
Não é, pois, nenhum absurdo o filósofo dizer, como disse recentemente, para a gargalhada das hordas obtusas, que criou toda esta confusão que está acontecendo no Brasil. Certamente não criou sozinho, mas não é possível duvidar que foi um dos principais criadores. Você pode rir e crê-lo um louco delirante, por que não? Riram até de Sócrates, afinal, antes de o matar. Mas fazê-lo é apenas ignorar onde estão as raízes da sua própria ação, é apenas tomar sua própria ignorância como padrão do mundo, é apenas, enfim, crer que os supermercados são a causa das cenouras.