Autor: Prof. Olavo de Carvalho
Fonte: http://obrasildopt.blogspot.com.br/2009/12/olavo-de-carvalho-comentarios-ao-texto.html
Como não encontrei o original, transcrevi da fonte acima. Não posso garantir que está inalterado. A imagem de ilustração é o próprio ” Rodericus “.
Como Rodrigo Constantino (Rodericus Constantinus Grammaticus, aquele do “entre mim”) prometeu me ensinar a debater e exigiu que em vez de observações soltas eu produzisse um comentário linear ao seu artigo sobre Voltaire e a Igreja, disponho-me aqui a fazer isso, em capítulos, levando até o fim o exame dos seus argumentos (digamos que o sejam), mas advirto que não considero esse empreendimento, de maneira alguma, um debate de opiniões. Não há debate entre o conhecimento e a ignorância. Constantino está excluído de qualquer discussão séria sobre assuntos religiosos ou filosóficos por seu absoluto despreparo e sua confiança cega em chavões populares, que ele toma como portadores de certezas indiscutíveis ao ponto de que a simples ameaça de contestá-las lhe causa espanto e indignação, como é típico do provinciano ao ver desafiadas as crenças usuais do seu meio limitado.
O propósito dessas linhas não é de maneira alguma debater com Rodrigo Constantino, mas apenas mostrá-lo aos leitores como anti-exemplo, como amostra de tudo o que não é e não deve ser um estudante. Se por acaso ele tiver a presunção de se alçar à condição de meu debatedor, terei o direito de exigir que minha análise de seu artigo seja também examinada linha por linha, impugnada afirmação por afirmação, com provas e exemplos históricos. No mínimo esse meu professor de arte dialética deveria estar informado de que a regra mínima do debate honesto reside na igualdade de exigências de parte a parte. Qualquer coisa que ele venha a me objetar, e que não se apresente com todos os rigores formais de um comentário linear será rejeitada desde logo como desconversa e mera expressão de sentimentos irracionais. Digo isso porque nas páginas da comunidade “Olavo de Carvalho” no orkut ele simplesmente esfarelou a conversa, atirando para todos os lados ao mesmo tempo, misturando como doido todos os níveis de significado e até apelando ao recurso porco do bombardeio de perguntas em desordem (estratagema 7 de Schopenhauer), além de impugnar como argumentum ad hominem a minha alegação de sua ignorância do assunto, provando assim ignorar também o sentido do termo latino a que apelava. Aqui não aceitarei essas impertinências. Para maior facilidade do referido, bem como dos demais leitores, numero os parágrafos do seu texto, bem como os do meu comentário.
TEXTO
1. “Muitos acham que religião não se discute, mas eu não concordo. Afinal, o tema é sagrado apenas para os que assim o consideram, e estes não têm o direito de exigir dos demais o mesmo tratamento de reverência.”
COMENTÁRIO
1.1. Desde os seus primórdios, a religião cristã sempre se abriu à discussão, como o evidenciam os escritos dos primeiros padres, quase todos eles compostos em resposta aos críticos da nova fé ou a divergências internas quanto ao seu significado. É absurdo que alguém entre num debate sobre o cristianismo ignorando o dado mais elementar da sua história, isto é, que a nova religião não surgiu como uma doutrina pronta, mas como fato de ordem espiritual e histórica, só adquirindo forma doutrinal aos poucos e, precisamente, ao fio das discussões internas e externas. Mais tarde, foram os filósofos cristãos que desenvolveram ao máximo a arte da discussão dialética (disputatio), o que seria uma extravagância inexplicável se não apreciassem a prática do debate, seja entre si, seja com os filósofos judeus e muçulmanos. Isto são fatos tão abundantemente comprovados pela História que não deveria ser necessário insistir neles se o presente estado de teratologia cultural brasileira não fizesse brotar por toda parte palpiteiros arrogantes que ignoram tudo dos assuntos que pretendem discutir. (V. NOTA no fim deste tópico.) Em todo caso, um bom sumário da evolução das discussões medievais encontra-se em Alois Dempf, La Concepción del Mundo em la Edad Media (Madrid., Editorial Gredos). Por fim, resta considerar que, ao longo da História, talvez nenhuma outra comunidade tenha produzido tantos debatedores e polemistas admiráveis como a comunidade cristã, de Sto. Tomás até Donoso Cortés, Newman, Chesterton, Bloy, Veuillot, Bernanos e os nossos Leonel Franca e Gustavo Corção entre outros inumeráveis, o que permaneceria um enigma incompreensível se fosse próprio da religião cristã furtar-se ao debate.
1.2. Quem excluiu a religião do campo dos debates racionais foi, em primeiríssimo lugar, o próprio Voltaire. Suas opiniões quanto a esse ponto antecedem e preparam o dogma positivista que veta a discussão de tudo o que não esteja ao alcance dos cinco sentidos. Como deísta, ele acreditava que existe um Deus criador e bom, mas que nada mais se poderia saber a respeito, sendo inúteis e perniciosas não só as investigações dos teólogos mas todas as especulações de Spinoza, Leibniz, Wolff e outros, às quais ele não opunha argumento nenhum mas apenas a chacota fundada numa interpretação caricaturalmente pueril dos textos. O próprio Voltaire confessava não entender as doutrinas desses filósofos, mas atribuía isso à insensatez intrínseca dessas doutrinas e não à sua própria falta de tirocínio filosófico, fazendo da inépcia a virtude suprema do intérprete e reprimindo em seus leitores o desejo mesmo da investigação filosófica.
1.3. O passo seguinte nessa “proibição de perguntar”, como a chamou Eric Voegelin, foi dado por Immanuel Kant, logo imitado pelo positivismo comteano e seus sucessores diretos ou indiretos. Isto pode ser conferido em qualquer manual de história da filosofia. Kant foi o inventor da oposição radical moderna entre “fé” e “conhecimento”, que bloqueava automaticamente a possibilidade da discussão racional dos fundamentos da religião.
1.4. Por fim, Max Weber, um herdeiro intelectual do positivismo, consolidou o muro de separação entre “fatos” e “valores”, tornando estes últimos o objeto de puras escolhas individuais, externas ao debate racional.
1.5. Rodrigo Constantino já começa, pois, o seu artigo com uma brutal inversão, ao atribuir à religião e não aos seus críticos modernos a iniciativa de excluí-la do rol dos assuntos debatíveis. É um erro medonho, elementar e bárbaro, mas não posso imputá-lo à malícia genuína, pois nenhum malicioso seria tolo o bastante para proclamar, com ares de tanta certeza, uma bobagem tão facilmente impugnável.
NOTA ao parágrafo 1
O direito à livre expressão de opiniões implica, da parte dos possíveis ouvintes, o direito de não lhes prestar a mínima atenção. O direito à expressão não é a mesma coisa que o direito à atenção pública. Este, por sua vez, é proporcional à sinceridade do interesse pelo assunto, a qual se mede facilmente pelo tempo e pela seriedade concedidos ao seu estudo. Isso quer dizer, sumariamente, que o ignorante das bases elementares de uma discussão não tem, moralmente, nenhum direito a solicitar e menos ainda a exigir a atenção do público, muito menos em pé de igualdade com aqueles que dedicaram sua vida inteira ao estudo do tema. Rodrigo Constantino, que ignora tudo da história da Igreja, bem como da história da Filosofia, e tenta compensar seu vácuo de conhecimentos ciscando às pressas informações numa fonte tão incerta quanto a Wikipedia, não tem nenhum direito à minha atenção ou à atenção de qualquer leitor sério ao opinar sobre essas matérias. Não o reconheço como interlocutor, não o considero qualificado nem mesmo para ser meu aluno, de vez que lhe faltam o senso da sua própria ignorância e o simples pressentimento de que os assuntos em que opina têm atrás de si uma tradição milenar de estudos, sem o acesso à qual é impossível até mesmo a informação perfunctória sobre o “satus quaestionis”. Não acredito que ele seja totalmente desonesto, apenas monstruosamente inculto e presunçoso. O único direito que lhe reconheço nesta questão é o de calar a boca antes de se expor a uma humilhação completa que talvez ele não seja capaz de aproveitar como lição útil.
TEXTO
2. “Acredito que a crença religiosa dogmática é a maior inimiga da liberdade, e por isso creio que o tema não só pode como deve ser debatido sob a luz da razão.”
COMENTÁRIO
2.1. A idéia da liberdade, no sentido moderno de livre escolha individual, só surgiu no mundo como um dogma da Igreja. No mundo antigo era um conceito totalmente desconhecido. Nos países islâmicos ainda é ignorado e não faz sentido em face da prevalência da doutrina da predestinação.
O que se entendia como liberdade no mundo greco-romano era a simples capacidade de agir com base no poder individual (força física, propriedades, escravos, exército particular), o que naturalmente implicava a distinção entre os cidadãos livres e os demais.
A idéia da liberdade como um elemento constitutivo da natureza humana e portanto como um direito natural de cada pessoa independentemente de sua condição social e de suas propriedades foi uma novidade absoluta trazida ao mundo pela religião cristã. Foi com base nessa idéia que a Igreja combateu e finalmente aboliu a escravatura romana. (NOTA) Hoje todos desfrutam desse direito como se fosse uma obviedade conhecida desde o começo dos tempos, e não uma árdua descoberta que teve de lutar contra a incompreensão de toda uma estrutura mental consolidada por hábitos milenares.
2.2. Ortega y Gasset já dizia que os principais inimigos da cultura são os “señoritos satisfechos” que desfrutam do legado da civilização sem ter a menor idéia de como foi conquistado e, por ignorância das condições que o geraram, acabam por destruí-lo.
Suprimam o dogma cristão da liberdade humana e, em poucos anos, ideologias fundadas em hipóteses científicas (ou, se quiserem, pseudocientíficas) eliminarão toda liberdade civil, argumentando que os seres humanos são bichinhos programáveis sem a menor necessidade ou possibilidade de exercer a liberdade. Essas ideologias não surgiram só no campo nazista ou comunista, mas florescem abundantemente no campo cientificista-materialista ocidental.
2.3. Mesmo supondo-se que o dogma cristão fosse inimigo da liberdade humana, continuaria sendo um exagero pueril rotulá-lo “o maior” deles. Só para exemplificar, tomemos o período tido como de maior opressão religiosa no Ocidente, da fundação da Inquisição em 1232 até sua extinção em 1834, e comparemos com os regimes totalitários modernos.
2.3.1. Ao longo de toda a sua existência, o tribunal teve inimigos poderosos e foi abertamente criticado na Igreja, sobretudo nos círculos mais próximos do papa. Vocês conseguem imaginar um ministro de Hitler fazendo discursos contra o Holocausto, ou um assessor de Stalin condenando publicamente o Gulag?
2.3.2. Todo processo de heresia seguia um trâmite regular. Apresentada a acusação, o tribunal delegava um inquisidor para que fosse pessoalmente buscar o acusado e discutisse com ele, até à exaustão, os pontos suspeitos de heresia. A discussão podia se prolongar por muitos anos, e o inquisidor deveria conhecer o pensamento do acusado em todos os seus detalhes. No processo contra Pedro Abelardo, por exemplo, o inquisidor escolhido foi S. Bernardo de Clairvaux, por ter estudado as suas obras e por ser seu amigo de infância. A condenação só vinha quando o próprio acusado se obstinava até o fim em manter suas opiniões, a despeito de todas as tentativas de persuadi-lo do seu erro. Vocês conseguem imaginar semelhantes escrúpulos nos tribunais da Revolução Francesa, onde o intervalo entre a acusação e a decapitação era de semanas ou dias?
2.3.3. “Heresia” significa uma doutrina não católica ou anticatólica pregada dentro da Igreja por alguém que continua a intitular-se membro dela e a desfrutar da sua proteção. As doutrinas de outras religiões, ou apresentadas explicitamente como não católicas, não eram passíveis de processo por heresia. O objetivo desses processos não era eliminar o pensamento divergente, mas apenas manter a unidade interna da própria Igreja (NOTA). Enquanto os heresiarcas eram processados, os livros dos pensadores judeus e muçulmanos não apenas continuavam a circular livremente mas eram estudados e debatidos nas universidades e tidos em alta conta pelos filósofos cristãos. Vocês são capazes de imaginar o Partido Comunista da União Soviética punindo apenas os seus dissidentes internos e deixando circular livremente nas universidades os livros de Alexis de Tocqueville, Friedrich von Hayek, Ludwig von Mises?
2.3.4. A necessidade de preservar a unidade da Igreja era algo mais do que mero auto-apego de um grupo doutrinal. A Igreja era o principal fator unificador da civilização européia, então sob o ataque constante dos muçulmanos, unificados, do seu lado, pela religião islâmica. A fragmentação da Igreja tornaria a Europa indefesa contra os muçulmanos, e por este motivo, não por “fanatismo dogmático”, as heresias foram condenadas exatamente como hoje o seriam os crimes de alta traição num país em guerra. O que quer que pensemos dos métodos usados pela Inquisição, assim como dos abusos criminosos que não deixaram de ser cometidos em seu nome, não há como negar que, sem a sua ação, o desmembramento da Igreja e a ocupação da Europa pelos muçulmanos seriam praticamente inevitáveis. Hoje o nosso Rodericus Constantinus Grammaticus se chamaria Al-alguma coisa e, sob a vigilância da polícia religiosa, guardaria suas idéias voltaireanas para si mesmo, sob pena de decapitação. É uma delícia poder desfrutar dos benefícios da civilização ocidental e cuspir no túmulo daqueles que os fizeram chegar até nós.
2.3.5. Em termos quantitativos, a perseguição religiosa no Ocidente cristão não tem comparação possível com a sangueira desmedida inaugurada pela Revolução Francesa. Segundo a pesquisa histórica recente (v. Henry Kamen, The Spanish Inquisition), a mais temível das inquisições, a espanhola, executou no máximo vinte mil pessoas ao longo de quatro séculos, ao passo que a Revolução Francesa fez dez vezes mais vítimas em menos de um ano. E seria imbecil atribuir a sangueira revolucionária apenas aos jacobinos. Os girondinos, dos quais os liberais modernos se apresentam como herdeiros ideológicos, foram os primeiros a pregar a matança como panacéia revolucionária para os males da França.
2.3.6. Apresentar pois o dogmatismo religioso como “o maior inimigo da liberdade” é apenas forçar a linguagem para criar do nada uma impressão de realidade. É um peido verbal que se espalha no ar para lançar sobre os circunstantes a culpa pelo mau cheiro.
NOTA ao parágrafo 2.1
No sistema romano, os escravos não podiam ter família nem propriedades. As relações sexuais eram coletivas para que os escravos não soubessem quem eram seus pais, não tendo portanto nem mesmo a possibilidade de disputar a herança de objetos de uso pessoal.
TEXTO
3. “Foi o que fez Voltaire, o ‘Pai do Esclarecimento’, segundo Karl Popper. Em seu livro O Túmulo do Fanatismo, Voltaire liga uma metralhadora giratória, mas munida com sólidos argumentos, contra o fanatismo religioso.”
COMENTÁRIO
3.1. O livro chama-se Examen important de milord Bolingbroke ou le tombeau du fanatisme. Foi escrito por volta de 1736 e publicado em 1767. Seus “sólidos argumentos” históricos são de cabo a rabo plagiados da Histoire critique du Vieux Testament, de Richard Simon (1678). Na época de Voltaire, essa obra já havia sido submetida a exames críticos devastadores, (Jacques-Bégnine Bossuet, Défense de la Tradition et des saints Pères, 1693, e La Politique tirée de l’Écriture sainte, 1709 ; Antoine Calmet, Dictionnaire historique et critique de la Bible,1722-1728). Voltaire omite as objeções apresentadas por esses autores, saltando sobre o status quaestionis e repetindo as acusações de Simon (sem citar a fonte) como se fossem a última palavra no assunto. Isso mostra, no mínimo, que ele tinha consciência de estar escrevendo apenas para uma platéia popular, alheia às investigações eruditas e à verificação de fontes, podendo, pois, permitir-se as maiores barbaridades sem grande risco de ser contestado. Que, passados dois séculos e meio, esse pastiche irresponsável seja por sua vez citado como fonte fidedigna, é algo que só pode acontecer na periferia do mundo, num ambiente provinciano alheio à vida intelectual civilizada. A crítica anti-religiosa de Voltaire já foi bem estudada e o consenso geral dos historiadores é que ela vale apenas pela virulência do sarcasmo, não pelo conteúdo histórico ou filosófico, constituído na maior parte de invencionices e sofismas cujo ridículo o estudante treinado reconhece à primeira vista, como por exemplo o de que todo cristão é egoísta porque cuida da salvação da sua alma em vez de fazer o bem aos outros. Voltaire, embora fosse uma inteligência menor, tinha o próprio gênio em tão alto conceito que chegou a proclamar : « Jesus precisou de doze homens para construir o cristianismo ; eu provarei que basta um só para destruí-lo. » A resposta dos tempos foi implacável. « Para nós, hoje, a sua obra em conjunto já não existe », conclui Otto Maria Carpeaux na História da Literatura Ocidental. Sobram uns poucos contos, que ainda fazem rir, e o Éssai sur les Moeurs, que dá testemunho do nascimento da sensibilidade histórica européia sem lhe acrescentar propriamente nada. Principalmente da sua crítica à religião resta muito pouco : « O antipascaliano Voltaire morreu para sempre.» Carpeaux, é claro, não previa o advento de Rodrigo Constantino.
3.2. O livro de Voltaire não é contra « o fanatismo », mas contra a religião cristã e a judaica em si mesmas. Constantino usa o termo « fanatismo » porque segue a moda de rotular de fanáticos todos os crentes de qualquer religião que seja – um truque semântico destinado a lançar sobre os cristãos e os judeus a culpa do que os radicais islâmicos fazem contra eles. Significativamente, Constantino usa o mesmo rótulo infamante para qualificar a minha pessoa, malgrado o fato patente de que, na rápida discussão à qual ele se referia, eu não defendesse nenhum artigo-de-fé de religião nenhuma e sim apenas a exigência da informação culta em debates a respeito. Não havendo portanto limites para a abrangência do termo « fanático », devo concluir que ele não significa nada além da confusão de maus sentimentos que Rodrigo Constantino nutre por certas pessoas.
* * *
NOTA: ainda sobre a liberdade de opinião
Pela lógica mesma do princípio de liberdade de expressão, há uma diferença entre a mera expressão de opiniões privadas num círculo de amigos e a opinião alardeada em público por alguém reconhecido como “opinion maker”. No primeiro caso, a liberdade só é limitada pelas conveniências sociais e pela reação do grupo. O segundo implica algumas obrigações incontornáveis. A mais importante delas pode ser resumida assim: Nenhum formador de opinião tem o direito de tomar partido desta ou daquela corrente de idéias sem conhecer previamente, e com igual extensão, as demais correntes em disputa sobre o mesmo ponto. Isto é assim porque as idéias não existem no ar, puras e isoladas, mas fazem parte de uma trama social de discursos que se entrechocam, se complementam, se reforçam e se neutralizam, seja simultaneamente, seja na sucessão dos tempos. É só da visão abrangente desse conjunto que se obtém a clara percepção do sentido de cada uma delas.
O cidadão privado, sobretudo jovem, tem todo o direito de ler um livro isolado, entusiasmar-se pelas idéias do autor e sair apregoando num círculo pessoal a sua veracidade final e imbatível, sem a menor consciência do que outros disseram a respeito dos mesmos pontos ou diretamente contra essas idéias.
O formador de opinião não tem esse direito, pois ao fazer isso estará transmitindo a seus leitores e ouvintes uma visão deformada e falsa. O sentido e importância das idéias não pode depender da casualidade de um sujeito ter lido um livro e não outro, ou outros. O sentido e a importância das idéias depende do seu lugar na trama integral da cultura e, mais ainda, do seu lugar na história dos debates a respeito do mesmo tema. O formador de opinião que defende idéias soltas, sem o conhecimento desse contexto, é na verdade um deformador, um produtor de crenças aberrantes e sem sentido.
Rodrigo Constantino entusiasmou-se por um livro sem ter a menor idéia de que esse livro ocupa um lugar bem determinado, e abaixo de modesto, já não digo na história da filosofia, onde não ocupa nenhum, nem no da ciência das religiões, onde é solenemente ignorado, mas no campo bem mais limitado da mera polêmica religiosa e anti-religiosa. Esse lugar é o de um plágio vagabundo de obras só um pouquinho mais sérias. Mesmo no conjunto de obras do autor – Voltaire –, o livro mencionado está entre os mais datados e superados pelo tempo, não só pela constatação do plágio mas porque o avanço posterior dos estudos de história e ciência das religiões tornou absolutamente inaceitáveis as interpretações pueris que ele faz dos textos bíblicos.
Ao brandir esse livro como argumento anti-religioso para impressionar uma platéia que sabe ainda menos que ele, Rodrigo Constantino provou ser apenas um charlatão, com o atenuante de ser um charlatão inconsciente, já que ignora as regras mais elementares do debate cultural e nem mesmo ouviu falar da obrigação de informar-se sobre o status quaestionis antes de sair alardeando, como argumentos fulminantes, velhas bobagens a que jamais algum estudioso de religiões deu a mínima importância.
A confusão que ele cria com isso é ainda mais danosa porque, nas condições atuais do Brasil, a consciência do que é um debate cultural e de quais as suas exigências estruturais desaparece velozmente do horizonte de visão da massa estudantil, reduzido a dimensões exíguas pela pobreza do repertório oferecido pelas universidades e pela mídia.
A necessidade de conhecer o status quaestionis, por exemplo, é completamente ignorada por professores universitários e articulistas de jornal. Quando a mencionamos, entendem que é mera exigência pedante, sem importância prática para o entendimento da matéria em debate, quando ela é na verdade o único meio possível de obter esse entendimento.
Dessa ignorância resulta um efeito pior ainda, que é o hábito geral de raciocinar a partir de meras palavras e suas definições nominais, sem ter em conta o abismo que pode haver entre essas formas dicionarizadas e as realidades correspondentes no mundo dos fatos. As discussões tornam-se assim meros arranjos de frases que, quando bem sucedidos, são aceitos como persuasivos e verdadeiros ante quem desconheça a substância da matéria em debate, pois quem a conhece sabe que esses improvisos verbais passam longe de uma verdadeira discussão do assunto.
O resultado geral é uma barbárie verbosa e oca, na qual toda discussão séria se torna impossível e mesmo a prova mais detalhada e substantiva só pode prevalecer se por acaso vier a suscitar também admiração como feito de retórica.
Não é um acaso que, nesse ambiente, o próprio entendimento do que sejam “razão” e “ciência” se torne inviável, e as palavras correspondentes, reduzidas a estereótipos, sejam brandidas como símbolos de autoridade na defesa de ódios e preconceitos totalmente irracionais.
Quando Rodrigo Constantino menciona entre as “críticas embasadas” que encontrou do livro de Voltaire a afirmativa de que “os judeus são um povo de ladrões” ou de que o objetivo de todos os grandes santos, místicos e profetas fundadores de religiões é “dominar e enriquecer quanto puderem”, ele chafurda na mais baixa irracionalidade no instante mesmo em que imagina personificar a razão e a ciência.
A miséria da sua falta de consciência de si é tão deplorável, tão patética, que eu preferiria nada dizer a respeito, só consentindo em dizer alguma coisa porque sei que essa miséria é contagiosa e temo pelo futuro de seus leitores.